top of page
Foto do escritorVeredas críticas

Artistas do Povo - Entrevista: Victória Monteiro, "Botem o cavalinho na Chuva"

Por Ricardo Figueiredo


Um livro de poesia na gaveta não adianta nada Lugar de poesia é na calçada Lugar de quadro é na exposição Lugar de música é no rádio


Ator se vê no palco e na televisão O peixe é no mar Lugar de samba enredo é no asfalto Lugar de samba enredo é no asfalto


- "Cada lugar na sua coisa", Sérgio Sampaio


Pode ainda parecer que, embora em geral a bela arte permita reflexões filosóficas, ela não seja, contudo, um objeto adequado para a consideração científica autêntica. Pois a beleza artística se apresenta ao sentido, à sensação [Empfindung], à intuição e à imaginação, possui um âmbito distinto daquele do pensamento e exige, assim, que sua atividade e seus produtos sejam apreendidos por um outro órgão, não pelo pensamento científico. (HEGEL, 2001) ¹


Ora, no universal a formação cultural, ao ser substância, consiste apenas em ser capturada pela consciência-de-si para produzir o vir-a-ser por meio da reflexão. Quer dizer, o indivíduo aprende no universal, por meio da formação cultural , a consciência-de-si mesmo e por meio de si, isto é, da sua experiência de formação, produz ao vir-a-ser do espírito se dissolvendo na universalidade ao alcançá-la. É uma relação recíproca que obedece a falta de ambas as posições.

É por isso que a ciência apresenta a formação cultural em sua necessidade de atualização em sua configuração significando que cada momento particular é aquilo que em si mesmo ativa o movimento do todo. Estamos aqui novamente nos contrapondo àquela leitura em que o estágio superior do Espírito é a reunião das ruínas de um todo orgânico. ( BARROS, 2022) ²




Saudações de Nova Democracia, Victória.



Até aqui temos iniciado as entrevistas perguntando como foram os primeiros contatos dos artistas com a arte. Como isto se deu na sua história?



V: Não cresci exatamente rodeada de arte, fora o que estava tocando na rádio do carro do meu pai ou passando na TV aberta. Mas dá para dizer com alguma segurança que sempre comi da arte pelas bordas, e tenho a impressão de que a literatura sempre foi o meu natural, mesmo quando estive distante dela. Um momento especialmente importante foi meu encontro com Fernando Pessoa na adolescência. Este encontro me movimentou a tal ponto que a partir dele entendi, ainda que então de forma desorganizada, com o que as palavras lidavam, o que nelas era possível, e ousei escrever.


Por que escolheu a Palavra? Ou foi ela que te escolheu?


V: Os dois. Parece fácil demais dizer que foi a palavra que me escolheu, quase místico em um sentido que não me atrai, mas tem algo de muito verdadeiro nisso também. Quando era pequena, gostava de ler e escrever, inclusive algumas historinhas, mas também de ver simplesmente uma palavra escrita num papel, por motivos que até então desconhecia. Digamos que, as palavras tendo se apresentado a mim, eu aquiesci a elas, e aí o pacto estava feito. Mas procuro não ter uma relação de exclusividade com as palavras.



por Victória


O que é a Palavra para a Victória?


V: O próprio pensamento. E a palavra poética, o próprio pensamento agindo sobre si mesmo sem excluir o corpo.


Há uma canção de Gilberto Gil, "Quanta", em que ele faz uma aproximação da Ciência e da Arte. Diz nosso mestre: Sei que a arte é irmã da ciência/ Ambas filhas de um Deus/fugaz/ Que faz num momento/ E no mesmo momento desfaz/ Esse vago Deus/ por trás do mundo/ Por detrás do detrás. O que ele está querendo dizer, na sua perspectiva?


V: A arte, como a ciência, quer conhecer. Acredito que a arte tenha a capacidade de sintetizar causas, bem como de revelar e estabelecer relações entre elementos do mundo e experiências do ser que, antes de existirem enquanto arte, não se encontram plenamente ou sequer acessíveis à consciência, e que talvez só sejam inteligíveis ou nomeáveis em linguagem artística. Mas a arte conhece seu “objeto” enquanto o cria, modificando-o e dando origem a algo que até então não era, não existia. Um filme não existe antes de um filme existir, um poema não existe antes de um poema existir. É por isso que, no caso da literatura, é impossível transcrever: apenas escrever é possível. Como a ciência, a arte aspira a algum grau de objetividade. E quando um artista conhece o melhor possível suas próprias leis criativas - sejam quais forem ou seja qual for sua linguagem - de modo a agir de forma mais precisa sobre sua matéria, como não seriam também estas as leis da natureza, leis de Deus?


O surgimento de novas escolas artísticas ou vanguardas no passado pareciam estar ligadas ao desenvolvimento da ciência, de novas relações sociais e ideais de suas respectivas épocas. Breton, por exemplo, liderando o movimento surrealista no século passado, tentou fazer uma síntese, de caráter marxista, entre a ciência e o que era considerado completamente subjetivo, particular. Exaltou algumas pseudociências também nesse movimento. Ao usar a caneta, algum tipo de ciência (ou pseudociência) está próxima na criação de seus versos?


V: Não faço ciência ao escrever poemas - e o poema não se quer ciência, portanto pseudociência tampouco é -, mas aspiro ao conhecimento ao escrevê-los. A questão é: a que tipo de conhecimento? Ou estaria mais para um saber? O que um poema pode dizer, ou ser? Os artistas românticos e sua arte, burguesa por excelência, entenderam o poema como expressão da subjetividade de um indivíduo. Com o advento da psicanálise e a nomeação do inconsciente, os surrealistas entenderam que não havia um sujeito tão bem delimitado assim, um Eu bem comportado ou senhor de si, e que a arte deveria incorporar, inclusive tal qual se apresenta, um inconsciente que é por si só criativo, autônomo mas jamais apartado de seu meio - embora eventualmente dissociado dele. Acho que atualmente entendo o poema como um movimento de um inconsciente - simultaneamente individual e coletivo - em direção à objetividade que é sua materialidade. Não como algo que vem à superfície, mas que se constitui na superfície.


Você tem se aventurado no mundo das artes visuais, como a pintura. Como essas duas práticas se relacionam no seu fazer artístico? Há uma influência recíproca entre elas? É possível extrair conhecimento de uma e, digamos, aplicá-lo em outra?


V: Comecei a pintar há pouco tempo, há mais ou menos dois anos. As artes visuais sempre me tocaram, embora eu achasse que o desenho e a pintura eram linguagens que eu não podia praticar. o lápis, as pontas finas eram frágeis demais, e eu não conseguia ter nenhuma precisão. Mas em dado momento senti de arriscar desenhar com carvão, e depois comecei a explorar as tintas, que me reconciliaram com as cores. Acho que as coisas que pintei até agora têm contornos mal definidos, algo de inacabado, que sempre acaba por transparecer nos poemas também. Ou talvez seja o contrário.



por victória


No mundo humano parece existir uma tensão entre aquilo que é comum a todos e o que é individual. Nem sempre os anseios, desejos e sonhos das pessoas conseguem encontrar formas de efetivação diante de uma lógica que se coloca como universal, o nosso modo de reprodução da vida, o capitalismo. Essa tensão está presente em algum de seus poemas? A poesia comporta algo que nos ajude a lidar com essa situação?


V: Sim, pois muitos poemas referem-se a uma certa alienação do desejo e sua reprodução cristalizada. E o que é, afinal, a grande arma do capitalismo? Ser máquina ininterrupta de aniquilar o desejo, quando desumaniza, e de cooptar o desejo, quando seduz. Em todo caso, de aliená-lo. A poesia cumpre um papel na nomeação do desejo e em sua própria produção; isto é, cumpre um papel em sua desalienação e em sua continuidade. Acho que experimentar isso, enquanto escritor.a ou leitor.a/ouvinte, é por si só confrontar a lógica capitalista, mas a poesia é muito pouco, sozinha, enquanto poema escrito numa tela, folha de papel ou dito em voz alta, para transformações maiores. A menos que entendamos a poesia como um modo de vida não contemplativo, mas ativo, transformador das relações tal qual ela mesma é quanto à linguagem, e desejemos praticá-la em outros domínios da vida, um máximo possível.


Liberdade e arte, poesia neste caso: qual seria, na sua visão, a relação entre elas?


V: A arte não é o único território da liberdade, mas é território da liberdade por excelência. Mas não é como se na arte a liberdade fosse dada, entregue, e isso independente de qualquer censura ou autocensura; é que também na procura pela linguagem, de que a arte é feita, a liberdade é uma luta constante.


O que é particular na sua obra?


V: Acho que essa é uma pergunta mais para quem lê mesmo, ainda que eu deva ser minha principal leitora rs.


E universal?


V: Tudo o que posso dizer é que, sem pretensões à universalidade, se eu não julgasse que há algo de universal no que escrevo, não escreveria.


Qual a relação de sua poesia com o tempo ?


V: Acho que o que escrevo incorpora bastante a lembrança da morte, expressão maior de nossa temporalidade, e comunica certa necessidade de dizer sim a ela. Não num gesto suicida, e sim entendendo nossa temporalidade como expressão de um certo tipo de eternidade que não apenas integramos, mas modificamos, apesar de sermos mortais e, ao mesmo tempo, porque o somos.


Há um poema de Rimbaud chamado “A uma razão” onde ele imagina um novo mundo, em que ele termina dizendo “O sempre chegando, indo a todo canto”. A poesia, a arte no geral, possui alguma relação com o desejo de eternidade e com a própria eternidade - se é que ela existe?


V: Acho que sim. É que posso facilmente conceber uma eternidade, mas uma eternidade imanente, espinoseanamente falando mesmo; uma eternidade que não está depois de nós. Uma eterna relação de causas cujo centro está em toda parte. A arte participa, como tudo, desta eternidade; e o que deseja é, compreendendo algumas de suas leis, estar à sua altura a ponto de modificá-las. No caso da poesia, tudo depende do quanto o poema durar.


Existe alguma ligação entre conceber que o mundo precisa ser transformado e a poesia? Ou ela está além do que Marx chamou de práxis e de ideologia?


V: Poesia é trabalho de modificação da palavra, do pensamento, mas também do corpo de quem escreve/fala e de quem lê/ouve; é modificação e transformação da natureza, portanto, pois é uma intervenção na língua, e a linguagem é boa parte do que somos. Sendo assim, é práxis, mas, novamente, em termos societais, não poderíamos falar de uma poesia fechada entre quatro paredes. O único compromisso essencial do poema é modificar a linguagem, embora isso possa ter tantos outros efeitos. Mas é aquilo: a poesia não é transformadora a menos que a entendamos como um modo de vida ativo, transformador das relações tal qual a poesia é transformadora quanto à linguagem.


Em um livro ainda não publicado, há um poema que termina dizendo que há pessoas que “odeiam o amor em sua origem”. Quem são estas? Poderia nos explicar ou é melhor deixar que pensemos por nós mesmos?


V: Podem pensar.


Há um outro poema seu, do mesmo livro, que termina dizendo "hoje escrevo poemas de amor”. De forma sucinta, o que são “poemas de amor”?


V: Boa pergunta. Talvez poemas que acatam justamente aquilo que temos de bruto, de inacabado, num gesto amoroso em sentido ético, compromissado com a vida.


Diante de nossa situação como povo brasileiro, o que vê no horizonte?


V: Acho que há de continuar a ser triste e difícil, inclusive e principalmente para quem já é triste e difícil, mas que também continuaremos. Em algum momento, expulsaremos os militares e os bilionários. O Brasil é filho de tantos traumas, não sei quanto tempo levará para que olhe o sangue derramado e se configure como sujeito de sua história. Mas se os ovos da serpente estouraram com essa extrema-direita que encontrou eco no ressentimento do povo para se proliferar, todos os que a testemunharam e disseram “não” triunfaram. Sabemos o quanto as elites odeiam a ciência, a cultura e qualquer aceno à uma democracia popular. Acho que o “povo brasileiro”, se é que isso existe, está longe de ser unânime em ter uma lógica anticapitalista, fundamental para lidarmos com nosso passado e elaborarmos nosso futuro. Mas há tantos lugares, tantas pessoas, e podemos ver com detalhes até onde o capitalismo vai para se salvar e o que ele está sempre pronto para aniquilar. A alienação do desejo que é a força do capitalismo é escancarada tanto na desumanização da miséria quanto nas violências que dela se alimentam e dela decorrem. Essa alienação também está presente nas aspirações, nos modos de desejar das mais diversas classes, e no eco que encontra o discurso fascista. Mas acredito muito em nossa capacidade de palavras e ações dissonantes diante de tanta estupidez e brutalidade.


Às pessoas que fazem arte - ou gostariam de fazer - e chegaram até esse ponto de nossa conversa, você teria algum conselho para deixar?


V: É o que eu digo, era o que eu diria (como diria Riobaldo): o medo não é amigo de ninguém. Segundo a minha experiência, não é preciso saber o que criar antes de criar, só assim a arte é possível. Aos que já fazem arte, não sei, agradeço, digo para botarem mesmo o cavalinho na chuva.




por victória

Referências:


¹ HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Cursos de estética, 2001

² BARROS, Douglas, Hegel e o Sentido do Político, 2022

Comments


bottom of page