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Entre um voo e outro - Guilherme Silveira

Atualizado: 6 de jun. de 2022


Dentre as olhadelas que dou no facebook, nada pode ser melhor do que enfrentar um texto do passado, contido de toda a ternura romântica precavida de toda acidez futura. Adiciono, porém, essa acidez agora por se fazer necessária. Não que deixará o texto, já que o que nasce torto assim desfalece, bom; apenas para dizer: Ei, menino, acorda que a realidade não passa nem perto desses olhos virgens.

Dobra-se a rua perpendicular à pista de pouso do aeroporto de Guarulhos e entra-se no bairro São João, onde chove a garoa fina de uma típica tarde paulista de janeiro. A contradição é feia: um aeroporto de porte internacional se contrasta com o bairro simples e periférico, cujo seus habitantes admiram os gigantes de ferro que passam, com suas turbinas barulhentas, sobre suas cabeças. Talvez seus olhares profundos em direção ao céu simbolizem o desejo infindável de voar como os pássaros, pra fugir de vez pra qualquer lugar que não ali.

Chego à casa de Dona Dalva; externamente seus podres tijolos de barro e a rara tinta branca se deparam com a rua de terra, esquecida talvez pelos nobres engenheiros do outro lado do muro. Entro e sou recebido com abraços enquanto o cheiro de comida já tomou o ambiente, numa revolução rápida e brutal, excitando instantaneamente minha fome, monstro criado e gestado desde Ermelino Matarazzo. A senhora de mais idade, então grita “tá na mesa”. E descem, quase que tombando na escada de cimento mal acabada, duas mulheres muito parecidas; decerto filha e mãe, as quais se confundem pelos cabelos longos e negros, porém se diferenciam na vivência; a menina, com olhar talvez inseguro de conhecer um estranho, arruma a crista enquanto saboreia, lambendo os beiços, o aroma da carne ao ar que já se instalou no ambiente de poucos metros quadrados.

Comamos, digo eu ansioso para saborear o macarrão com molho vermelho e bifes de carne servidos à mesa. Sentamos e as moscas invadem o espaço em um ataque fulminante à comida, mas efêmero: são espantadas a tapas e panos de Dona Dalva. Do lado de fora da casa, uma sinfonia periférica: cães e um alto samba que acompanham um bom churrasco vizinho. Palmas ao portão e os olhares dos sentados à mesa se entrelaçam em um ar de confusão e incerteza. A garota mais nova abre o portão e com um ar entusiasmado grita: “Vó, o compadre”. Entra um homem da barba já branca dizendo um breve “oi” seguido de um sorriso com a típica piada: “cheguei na hora boa em minha gente”. Dona Dalva não demora a pegar um prato e puxar uma cadeira de madeira forrando-a logo com uma almofada que é para não “doer a poupança do compadre”. Fartei-me, comi deliciosamente a comida feita especialmente para a ocasião.

A dona da casa começa a fazer uma “quentinha” do que restou e mais palmas soam ao portão. Lá vai a menina de novo. Desta vez entra uma moça, entregando um pote enrolado a um pano. “Para comerem de noite, o coiso lá sabe fazer um churras”. Pega baralho, dominó, papel e canetas para a “forca”. A tarde está garantida; eu, Dona Dalva, o compadre e as duas moças com cabelos longos. Após uma xícara de café preto e forte, me despeço das companhias do dia, cada uma com um abraço e um rápido “Deus o abençoe”. A senhora amiga de minha mãe traz então a quentinha, e com um sorriso com poucos dentes diz: “Leve para a janta”.

Levei e sai meio que encabulado. A realidade é única: viviam como que ratos, esquecidos completamente e abominados por quem olha do alto protegido por algum tipo de status. Sai com a única vontade de ver toda aquela gente colocando o aeroporto aos seus pés, tocando um samba na pista de pouso e fazendo churrasco na torre de controle em chamas. Sai com o desejo de que o mundo fosse consumidos pela São João, por seu samba, seus cachorros e pelos olhos de Dona Dalva. E ainda quero.

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