O amor tornou-se tema obsessional na cultura de massas; esta o faz aparecer em situações nas quais, normalmente, não deveria estar implicado. O aventureiro, o cowboy, o xerife sempre encontram nas florestas virgens, na savana, no deserto, nas grandes planícies do Oeste o amor de uma heroína pintada e bela. A imprensa, por sua vez, polariza o "human interest" no tema do amor. A catástrofe de Fréjus nos leva ao amor, através da noivinha que devia casar-se no dia fatal; a morte de Fausto Coppi nos remete a seu amor pela Dama Branca; a viagem de Nikita Krushev à França nos lembra de seu amor por Nina. O amor é o próprio fundador da nova mitologia principesca; amor de Margeret por Townsend, depois Tony, amor de Elizabeth por Philip, amor de Soraya e Farah Diba, amor de Paola. O amor mantém a mitologia olimpiana de gente como Brigette Bardot, Jaques Charrier, Annette Vadim, Sacha Distel, Yves Montand, Marlyn Monroe, Liz Taylor. Os belos crimes passionais viram vedetes logo comentadas e o amor inocenta a esposa abandonada, assim como perdoa o velho ciumento que se vinga. O amor decantado, fotografado, filmado, entrevistado, falsificado, desvendado, saciado parece natural, evidente. É porque ele é o tema central da felicidade moderna. Houve, certamente, uma presença obsessional do amor nos cartões de amor e no romance cortês, no romance quimérico do século XVII, no teatro burguês do começo do século XX, mas a propriedade da cultura de massa é universalizar, em todos os setores, a obsessão do amor.
Essa universalização tranforma o amor no grande arquétipo dominante da cultura de massa: "Sans amour, on est rien du tout" diz La Goualante du pavre Jean. ¹³ "Amour je te dois le plus beaux jours de ma vie, tout ça m'est égal du moment qu'on s'aime" . Dalida, Piaf, Brassens, Anka, Sinatra, Dean Martin são os São João Crisóstomo da única boa nova verdadeira dos tempos modernos que ilustram Liz Taylor, Ava Gardner, Brigitte Bardot, Marilyn Monroe. O próprio da cultura de massas é libertar uma temática do amor simultaneamente autojustificado e vencedor. A autojustificação do amor remonta as passado distante: casamento, fundavam-no sobre si mesmo e fundavam sobre esse amor a legítima obsessão de toda uma vida; o amor romântico se justificava em seu próprio princípio lírico. Mas o amor cortês não ousava infringir a barreira sexual: sua vitória condenava o corpo à derrota. O amor romântico era "o barco que se bate contra o rochedo da vida''; o adultério burguês, por sua vez, se batia contra os rochedos mais prosaicos do casamento. Ora, a partir da década de 30 , com o "happy end", o amor se torna triunfal. Transpõe a barreira sexual para realizar-se na união dos corpos: supera os obstáculos da vida para realizar-se no casal; nos dias que correm ele se choca menos com o casamento do que o estabelece.
No antigo imaginário. com exceção dos contos de fadas, o amor não chegava, senão raramente, a superar os conflitos fundamentais que o opunham à família e à sociedade; chocando-se tragicamente com os grandes tabus, ele próprio se convertia em trágica fatalidade, pondo em jogo a própria ordem da existência: é com Le cid que aparece no imaginário ocidental o primeiro sinal de apaziguamento: o amor escapa ao ciclo infernal da tragédia e pode superar a grande proibição do Pai. Em seguida, o romance popular, tanto quanto o romance burguês, vão continuamente deixar transparecer o recalcamento do amor em todas as barreiras sociais: casamento , família, classe, raça, dever, pátria, etc, num combate duvidoso, onde o amor pode ou se espedaçar ou perfurar ocasionalmente as barragens, mas sem conseguir o desmoranamento completo das mesmas.
Até o surgimento da cultura de massa, o tema do amor burguês, se esgotava no conflito triangular entre o marido, o amante e a mulher, e os temas populares do amor se desenrolavam segundo uma espécie de jogo, em que se tratava de transpor obstáculos e armadilhas de todos os tipos ( riqueza, pobreza, mulher perversa, sedutor odioso, pais intratáveis, gravidez ilegítima, ciúme, mal-entendidos). Sem que ela tenha destruído esses temas, que sobrevivem uns no teatro e no romance burguês, outros na imprensa sentimental, mas que se tornaram marginais ( uns dizem respeito essencialmente às províncias psíquicas da alma burguesa, os outros aos sons projetivos das leitoras de menos de 16 anos ou das camadas populares menos favorecidas), a cultura de massa fez o amor atravessar o cabo dos conflitos trágicos ou melodramáticos e o cabo das subordinações. Diversamente dos filmes latinos-americanos, asiáticos ou soviéticos, nos quais o amor ou coloca seus problemas no seio do casamento ou deve ilclinar-se diante da lei ou do dever, o cinema ocidental, maciça vanguarda imaginária, faz o amor desembocar no mar livre da realização pessoal.
Assim, o amor toma forma no novo curso imaginário. Não é o amor da princesa de Clèves ou de Emma Bovary que se bate contra as instituições; não é o amor integrado ( no seio da família) ou o amor desintegrado cuja saída necessária é a morte ( Tristão e Isolda, Romeu e Julieta). É o fundamento tornado necessário e evidente de qualquer vida pessoal.
Para chegar a esse triunfo, o amor imaginário teve que superar suas contradições internas, eliminar seus fermentos desintegradores, mitologizar de maneira nova sua própria aspiração ao infinito. De fato, se o amor não é mais integrado ou desintegrante, é porque se tornou integrador. Tornou-se integrador, porque se tornou sintético, envolvendo em seu seio pulsões e valores contraditórios. A tradição ocidental do amor colocava, sem dúvida como todas as grandes tradições históricas, mas talvez mais nitidamente que todas as outras, a partir do século XIII, a oposição do amor sexual e do amor da alma. Essa oposição não encobriria senão parcialmente a oposição entre amor e casamento: ela radicalizava uma dupla polarização entre os temas da alma-irmã e os da posse carnal. Os temas espirituais eram valorizados, os temas sexuais sofriam maldição pecadora. Essa oposição é reencontrada no romance popular e no cinema dos primeiros decênios: de um lado, a virgem inocente ou o herói casto, de outro lado, a mulher perversa ou o ignóbil sedutor. A partir da década dos 30, diluem-se uns nos outros os temas virginais e os temas impuros, dá-se a decadência do amor puramente físico em benefício de um tipo sintético de amor, ao mesmo tempo, espiritual e carnal, simbolizado pelo beijo na boca, e de um tipo sintético de amantes, tirando partido dos prestígios eróticos da "vamp" ou do sedutor, mas também da pureza de alma do herói e da virgem. A atração sexual e a afinidade das almas se conjugam num sentimento total.
O beijo na boca não é só o substituto cinematográfico da união dos corpos proibida dos censores, é também o encontro de Eros e Psyché: o corpo, nas mitologias arcaicas, é a sede da alma; por outro lado é a boca que se fixa sensualmente primeira, ligada à absorção e à assimilação; o beijo na boca é um ato de duplo consumo antropofágico, de absorção da substância carnal e de troca de almas; é comunhão e comunicação da psique no Eros...
Do mesmo modo, os novos heróis de cinema trazem em si a totalidade sintética dos eros unido à psique, enquanto decaem as virgens e as vamps, os cavaleiros galantes e os vis sedutores.
Nesse amor sintético, a mulher tende a aparecer simultaneamente como amante, companheira, alma-irmã, mulher-criança e mulher-mãe e o homem como protetor e protegido, fraco e forte. A eliminação dos temas familiares e incestuosos no cinema ocidental implica sua integração latente entre os dois namorados. Em outras palavras, é a totalidade dos laços afetivos, antigamente repartida em múltiplas relações infrafamiliares, que tende a se concentrar no casal.
O casal emerge, pois, no cinema ocidental como portador do conjunto dos valores afetivos: os pais, as crianças são exilados para foro do horizonte do filme ou devidamente escamoteados; os deveres públicos, o Estado, a pátria, a religião, o partido raramente aparecem, ou aparecem como fatalidades exteriores, quer como problemas podendo ser superados pelo amor; o filme é o encontro de um homem e de uma mulher, sós, estranhos, um ao outro, mas que vão ser ligados numa necessidades absoluta.
A personagem central essencial do amor é o casal. O casal surgem da dissolução da família, mas como fundamento do casamento. A futura família, a do casamento, que deixa entrever o "happy end", não tem sentido enquanto consagração do casal. A partir daí o amor é muito mais que amor. É o fundamento nuclear da existência, segundo a ética do individualismo privado. É a aventura justificadora da vida - é o encontro de seu próprio destino: amar é ser verdadeiramente, é comunicar-se verdadeiramente com o outro, é conhecer a intensidade e a plenitude.
Esse amor é tão "total" quanto o amor romântico, mas essa totalidade é razoável: não é mais essa aspiração infinita que se choca com a realidade do mundo, acabando por se destruir ou destruí-la: a necessidade que ele traz em si não está mais em ruptura com um mundo em que tudo é transitório; insere-se no "happy end" enquanto imagem integrada e euforizante. Em outras palavras, o amor da cultura de massa, se perdeu a virulência desintegradora, como o panteísmo ilimitado do amor romântico, conservou se valor absoluto e totalizador. Sob esse ponto de vista, " A Hora Final" é exemplar. Uma vez que a humanidade que a humanidade se destrói sob os efeitos de uma irradiação atômica, os últimos olhares trocados Gardner e Gregory Peck demonstram que o amor é o que resiste, em última instância, à destruição, o que pode desafiar o final dos tempos, o que é, de fato, forte como a morte. Nesse filme, em que a pomba do amor voa sobre as águas informes do nada terminal, chega ao fim, de maneira mítica, a história do amor ocidental, isto é, a magnificação suprema do amor profano.
O amor nuclear, sintético, total, tal como o delineia o imaginário da cultura de massas, é de natureza dupla: é profundamente mitológico, porque supera todos os conflitos, escamotei o incesto, a sexualidade e a morte. É profundamente realista, porque corresponde às realidade vividas do amor moderno: de fato, o amor do casal tende a se tornar o fundamento do casamento; de fato, a virgindade foi desvalorizada; de fato, a maldição que a abatia contra a sexualidade foi aliviada e efetuam-se osmoses entre o amor espiritual e sexual; de fato, às barreiras de classe, de raça, de família opõem-se uma resistência enfraquecida do amor; de fato, o amor se torna um valor cada vez mais central da existência. O cinema apresenta, pois, não tanto uma imagem invertida, quanto um reflexo ideal da vida amorosa.
Por outro lado, ele é da mesma natureza do amor real profundamente impregnado de imaginário: o ser amado é o objeto de projeções afetivas que são as mesmas da divinização: o êxtase, a adoração, o fervor têm a mesma natureza que os sentimentos religiosos, mas em escala de um ser mortal. A natureza semi-imaginária do amor vivido permite a irrigação constante do imaginário pelo real, do real pelo imaginário. A tal ponto que foi possível dizer que, sem a necessidade de amor, toda uma literatura não existiria. O amor é, portanto, por sua própria natureza, a grande faixa oscilatória entre o imaginário e o real. As osmoses entre o amor imaginário e o amor real são tanto mais múltiplas e interfecundantes quanto o amor da cultura de massa é, de fato, profundamente realista ( identificativo). Em outras palavras, o amor da cultura de massa busca seus conteúdos na vida e nas necessidades reais ( individualismo privado moderno) e lhes fornece seus modelos.
Com efeito, é através do tema do amor que se efetuam as influências diretas do cinema; é a partir das condutas amorosas dos filmes que os processos de identificação desembocam no mometismos práticos. Os primeiros inquéritos sistemáticos de sociologia do cinema em 1930 ( movies and conduct por Herbert Blumer) haviam revelado que o "love making" dos adolescentes ( fazer a corte, abraçar) era quase caloado nos comportamentos amorosos dos filmes. As influências, aliás, distribuem-se por diferentes níveis. De um lado, a indústria da beleza e da sedução se desenvolve à sombra do "star-steptem" ( indústria de cosméticos, Max Factor, Elizabeth Arden, maquiladores de Hollywood. De outro lado, os heróis de filmes suscitam a imitação de seus gestos, de seu modo de andar, até mesmo seus tipos de roupas. ( Também abordo esses dois primeiros pontos no capítulo dedicado ao erotismo.) Enfim, no plano psicológico, a ideia de necessidade absoluta da aventura amorosa se impõe. Assim se dá o circuito entre filme e vida, entre o imaginário e o real: a necessidade de amor experimentada no decorrer da vida encontra no filme seus modelos, seus guias, seus exemplos, estes passam a aparecer na vida e dão forma ao amor moderno. Mas o cinema não é toda a cultura de massa: a temática do amor reina diferentemente nas novelas e narrativas da imprensa sentimental, nos correios sentimentais, no noticiário sensacionalista e , enfim, nas informações concernentes aos olimpianos. Ora, coisa notável, é o amor imaginário do cinema, o grande regulador das múltiplas temáticas amorosas.
A imprensa sentimental, como já disse, permanece em parto no nível melodramático-projetivo do cinema mudo e do antigo romance popular, enquanto a imprensa feminina bovarysta ( Elle, Marie-France) está orientada não só para o imaginário realista, mas para a práxis feminina ( conselhos de beleza, de higiene, de moda, etc). Os conselhos práticos ( principalmente o correio sentimental) são pequeno-burgueses: o interesse do lar, das crianças ou dos pais sobrepuja o amor, e os conselhos virtuosos e sábios fazem força para disciplinar os amores desorientados ou desorientadores. Por outro lado, os noticiários sensacionalistas vedetizam os excessos do amor, principalmente o crime passional. E não há dúvida de que vemos se delinear uma tendência, tanto na imprensa como nos juris de tribunal criminal, a inocentar o homicídio cometido pela mulher enganada ou pelo amante abandonado, desde que ele se exerça sobre o traidor ( processo Chevalier). Mas também vemos que, na realidade do sensacionalismo, nem todos os direitos são reconhecidos para o amor: se uma apaixonada mata o filho para poder seguir o amante, ela se torna infame. Em outras palavras, o amor achincalhante permanece sempre culpado. Isso vem confirmar que a cultura de massa confere prioridade ao amor sintético ( espiritual e carnal), nuclear e total, mas não ao amor louco. O imaginário cinematográfico está exatamente no eixo da concepção nuclear do amor, enquanto estão distribuídos pela periferia os amor melodramáticos por demais irreias, os "conselhos" sábios demais, as paixões sensacionalistas loucas demais. O conjunto da cultura de massa constitui uma sistema complexo que, ao mesmo tempo, provoca e freia os excessos do amor, em favor do amor nuclear. Contudo, desenvolvimentos recentes põem em jogo, senão a própria concepção nuclear, pelo menos o tema do único amor. As pertubações na vida amorosas dos olimpianos tendem, paradoxalmente, a desmitologizar o amor de cinema. As inconstâncias, rupturas ou divórcios das Martine Carol, Rita Hayworth, Elizabeth Taylor, Brigitte Bardot, Margaret, Soraya, Vadim, etc. racham e desintregram o "happy end" amoroso do cinema. A grande imprensa faz-se de espelho desta instabilidade proliferante que corresponde a própria realidade do último estágio do amor: pois o amor se torna tanto mais relativo quanto quer se manter no absoluto: desde que o amor "único" se quotidianiza ele se torna insípido , e iniciamos novamente a busca do amor único. A multiplicidade dos amores únicos numa vida se torna um câncer interno do amor, que lhe retira a eternidade.
Os olimpianos fazem portanto o mito do amor entrar de novo da realidade do tempo - e na realidade de nosso tempo. Mas essa nova imersão do mito no real talvez não atinja o núcleo mesmo do amor, pois, enquanto o amor absoluto se racha e enfraquece, ele torna a renascer, e nessa sucessão de morte-renascimento surge o verdadeiro absoluto oculto sob esse absoluto: não o amante ou a amante, mas a busca do amor. Essa busca em parte don-juanesca, em parte tristanesca que procura efetuar a conjugação entre Eros e Psyqué faz aparecer o movimento complexo e profundo do individualismo moderno que é tentar, desesperadamente, comunicar-se com o outro - semelhante e estranho - ser reconhecido e reconhecer, perder-se e afirmar-se no olhar de um alter ego amoroso, achar em escalada proporcional ao casal os valores afetivos do incesto, da família, da religião, da conquista e da escravidão, viver intensamente a única aventura privada do mundo burocrático - o que efetivamente a linguagem burguesa se chama "aventura".
EDGAR MORIN
Cultura de massas no século XX: neuroses
Trad: Maura Ribeiro Sardinha, 9.ed - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009
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