O presente excerto foi extraído do livro " O Surrealismo" , capítulo "O acaso Objetivo" de Jacqueline Chénieux-Gerdron, da Editora Martin Fontes, São Paulo 1992.
Depois de 1930, surge nos textos surrealistas principalmente sobre a pena de Bretton, a expressão“ acaso objetivo”, enquanto, no plano da arte, atividade paranóico-crítica, proposta por Salvador Dali, oferece lhe um correspondente totalmente abre aspas limítrofe (Breton em 1935). Assim, a prática do acaso objetivo que data dos anos 20, vem seguida de sua teorização.
Essa " luz da anomalia" de que fala Breton, voltando-se para aquilo que considera como algo já adquirido, não pode, entretanto, definir se essencialmente no plano da arte ( pictural ou literária), visto que coloca em jogo o mundo real e o tempo vivido pelo experimentador. O acaso se define clandestinamente como " causa acidental. De efeitos excepcionais ou acessórios com a aparência da finalidade" ( Aristóteles), como " evento acarretado pela combinação ou pelo encontro de fenômenos anos pertencentes a séries diferentes, na ordem da causalidade" ( Antonie Cournot). Uma definição de Henri Poincaré. Fica próxima da de Cournot, apresentando " evento rigorosamente determinado, mas tal que uma diferença extremamente pequena em suas causas teria produzido uma diferença considerável dos fatos." Todas essas definições são lembradas por Breton, em Minotaure. E acrescenta, a sua " para tentar ousadamente interpretar e conciliar nesse ponto em Engels e Freud: "O acaso seria a forma de manifestação da necessidade exterior que abre caminho no inconsciente humano. Em outras palavras, diante da coincidência ( exepcional) entre a necessidade natural e " necessidade humana" - do desejo humano e por vezes do temor do homem - , o acaso pode ser chamado de objetivo visto que tudo se passa então como se a subjetividade ( desejante) da pessoa envolvida se projetasse num objeto.
Não é diferente notário afastamento de Aragon no momento em que se realiza essa formulação mais teórica de Breton. Entre as " petrificantes coincidências" de que dá testemunho a narrativa de Nadja e a noção de "acaso objetivo” delimitada por Breton entre 1931 e 1937 a diferença é de teorização, justamente. Ao lado do deslumbramento de Breton pode-se encontrar desde os anos 10, os devaneios matemáticos inspirados a Marcel Duchamp pelas geometrias não-euclidianas, tal como essa apreensão do "acaso em conserva" que, em 1913, seria proposto pela obra Trois stopages-étalon ( três fio retos horizontais de um metro de comprimento caindo de um metro de altura sobre um plano horizontal). Existe aí uma espécie de gozo da arbitrariedade e do acaso, que faz pensar em Aragon: "por esses tempos magníficos e sórdidos, preferindo quase sempre as suas preocupações às ocupações do meu coração, eu via o acaso, em busca do acaso, única entre as divindades que soubera preservar o seu prestígio. Ninguém havia instruído o seu processo, e alguns lhe restituíam um grande encanto absurdo, confiando-lhe até os cuidados das decisões mais ínfimas. Eu me abandonava então." As indagações são bastantes divergentes, visto que, para Aragon, elas se situam ora na "vida" ( como testemunha a narrativa acima), ora na invenção do texto ( tal é o jogo aleatório de incipt e da colagem nas novelas de Le libertinage). Ao passo que para Breton tudo se joga no cruzamento da vida com o escrito, um relançando a invenção do outro.
Para Breton e para aqueles que o seguem no surrealismo, perceber o objeto " ou o ser encontrado) na sua relação com o desejo próprio do observador-ator é perceber um desnível entre o previsto e o dado, mas esse desnível é então recebido como um excedente, graças ao ao qual adquire eficácia o maravilhoso, "ficando abolido qualquer sentimento de duração na embriaguez da sorte". O objeto ou o ser encontrado objetifica o meu desejo, mas numa " solução por certo rigorosamente adaptada e, no entanto, muito superior à necessidade". Esse objeto me dá "vergonha do aspecto elementar das minhas previsões". Há no caso um desvio do sistema causal tal como funciona no discurso racional quando este segue os modelos das ciências matemáticas. Mais próximo da função de causa conforme é definida nas ciências físico-biológicas - onde às vezes tem algo a ver com o efeito -, o sistema causal efetivado no "acaso objetivo" concede uma parte essencial ao inconsciente e à sua assunção pelo imaginário. Daí resulta, sem dúvida, noutro plano, a ambivalência do desejo evocado: o que advém, às vezes, é o trágico, objeto de meu temor. Mas a reflexão de Breton sobre esse sistema de pensamento permanece, apesar de tudo, fascinada, e persiste em "preconizar, cada vez mais efetivamente, o comportamento lírico" apto a fazer surgir os seus signos, como se fosse preciso correr o risco do trágico se se quer assumir o próprio desejo. De qualquer modo, esse levar em conta o inconsciente afasta fortemente o surrealismo da referência freudiana. Em Freud, a escuta do desejo, através das barreiras neuróticas, não é invocada como o meio privilegiado de cura, que deve ser a consequência natural de uma reestruturação do ego. Ao passo que Breton, e com ele o grupo surrealista dos anos 30, acredita na virtudade da escuta e do contágio de tais aventuras.
O "acaso objetivo" só nos é possível mediante a sua transcrição escrita ou oral, narrativas ou lendas: Apollinaire se reconhecia, em perfil recortado de "homem-alvo", no plano de fundo de uma tela de Chirico datada de 1914. Quando foi referido na fonte, quiseram ver nisso a realização deste sinal. Em 1931, Victor Bauner pinta um autoportrait à la oeil énuclée ( auto-retrato de olho enucleado): em 1918, durante uma rixa na casa do pintor Oscar Dominguez, ao se interpor, recebe uma garrafada que lhe arranca o olho.
Em 1934, estando Breton a passear com Alberto Giacometti no "mercado das pulgas", compra ali, movido por uma escolha "eletiva", uma colher, "cujo cabo, quando estava apoiada na parte convexa, erguia-se à altura de um sapatinho que com ela fazia corpo". Lembra-se em seguida que, vários meses antes, havia tentado persuadir Giacometti a fazer um "cinzeiro Cinderela", cuja ideia lhe viera de um fragmento de frase de despertar. O evento, cada vez, realiza de modo excedente - trágico ou maravilhoso - aquilo que o signo (pictural ou de linguagem) havia precedentemente indicado.
O conjunto signo/fato a que se denomina acaso objetivo decompõe-se, pois, em um signo sem significação, cronologicamente primeiro, seguido de um fato considerado "causal" que mantém uma relação privilegiada com o signo anterior. O fato "dá sentido" ao signo, corresponde a certas características evocadas pelas palavras e pelos signos picturais, no seu significado como no seu significante. Esse sistema, no conjunto, pode ser chamado, como em outra parte propus, de "deslocamento factual".
[...] continua...
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