Ao longo do último século, grandes poetas, em quase todas as línguas da Terra, foram comunistas. Engajaram-se no comunismo, por exemplo, de forma explícita ou formal: na França, Éluard e Aragon; na Turquia, Nâzim Hikmet; no Chile, Pablo Neruda; na Espanha, Rafael Alberti; na Itália, Edoardo Sanguineti; na Grécia, Yannis Ritsos; na China, Ai Qing; na Palestina, Mahmoud Darwich; no Peru, César Vallejo; e, na Alemanha, resplandece, nesse aspecto, muito especialmente, Bertolt Brecht. Poderíamos citar, no mundo, um grande número de outros nomes, em outras línguas.
Podemos compreender esse vínculo entre o engajamento poético e o engajamento comunista como uma simples ilusão? Um erro, uma errância? Uma ignorância da ferocidade dos Estados dirigidos por partidos comunistas? Não acredito nisso de forma alguma. Procurarei argumentar, ao contrário, que há um vínculo essencial entre poesia e comunismo, se tomamos “comunismo” no mais próximo ao seu sentido primeiro: a preocupação com aquilo que é comum a todos. Um amor tenso, paradoxal, violento, pela vida comum. O desejo de que aquilo que deveria ser comum, acessível a todos, não seja apropriado O desejo poético de que as coisas da vida sejam como o céu e a terra, como a água dos oceanos e o fogo na mata numa noite de verão, isto é, pertençam por direito a todo mundo.
O poeta é comunista por uma primeira razão absolutamente essencial: seu domínio é a língua, mais frequentemente a língua materna. Ora, a língua é aquilo que é dado a todos desde a infância como um bem absolutamente comum. O poeta é aquele que tenta fazer uma língua dizer aquilo que ela parece poeta é aquele que procura criar no interior da língua nomes novos para nomear o que, antes do poema, não tem nome. E é à língua, tenham o mesmo sejam dadas a todos sem exceção. O poema é um presente que o poeta dá à língua. Mas esse presente, como a língua, é destinado ao comum, isto é, a esse ponto anônimo em que não se trata de ninguém em particular, e de todos, singularmente.
Então, os poetas, os grandes poetas do século XX, reconheceram no grandioso projeto revolucionário do comunismo algo que lhes era familiar: que, como o poema destina suas invenções à língua e como a língua é destinada a todos, o mundo material e o mundo do pensamento são destinados, integralmente, a todos, tornando-se não mais a propriedade de alguns, mas o bem comum de toda a humanidade.
E por isso que os poetas viram no comunismo sobretudo uma nova figura do destino dos povos. E “povo”, aqui, quer dizer principalmente as pessoas pobres, os operários, as mulheres abandonadas, os camponeses sem terra. Por quê? Porque é antes de tudo àqueles que nada têm deve dar tudo. É ao mudo, ao gago, ao estrangeiro, que se deve destinar o poema, e não ao tagarela, ao gramático ou ao nacionalista. É ao proletário – definido por Marx como aquele que não tem nada além do seu corpo capaz de trabalhar – que se deve destinar a terra inteira e também todos os livros, e todas as músicas, e todas as pinturas, e todas as ciências. Mais que isso, é a ele, ao proletário, em todas as suas formas, que se deve destinar o poema do comunismo.
É surpreendente que isso conduza todos os poetas a reencontrar uma forma poética bastante antiga: a epopeia. O poema dos comunistas é em primeiro lugar a epopeia do heroísmo dos proletários. O poeta turco Nâzim Hikmet distingue assim os poemas líricos, consagrados ao amor dos poemas épicos, consagrados à ação das massas populares. Mas mesmo um poeta tão erudito, tão denso quanto Cesar Vallejo não hesita em escrever um poema cujo título é “Hino aos voluntários da República”. Um tal título deriva evidentemente da comemoração da guerra, do engajamento épico.
Esses poetas comunistas retomam aquilo que, na França, Victor Hugo já havia descoberto: o dever do poeta é buscar na língua uma epopeia que não seja aquela da aristocracia dos cavaleiros, mas que seja a epopeia do povo no processo de criar um outro mundo. O vínculo fundamental a partir do qual o poeta comunista organiza o canto é aquele que a nova política pode estabelecer entre, de um lado, a miséria, a dureza extrema da vida, a terrível opressão, tudo aquilo que apela à piedade; e, de outro, o levante, o combate, o pensamento coletivo, o novo mundo, portanto tudo aquilo que apela à admiração. É nessa dialética da compaixão e da admiração, nessa oposição violentamente poética entre o rebaixamento e o levante, nessa reversão da resignação em heroísmo que todos os poetas comunistas buscam a metáfora viva, a representação não realista, a potência simbólica. Eles buscam as palavras para dizer o momento em que a eterna paciência dos oprimidos de todos os séculos se transforma numa força coletiva que é indivisivelmente aquela dos corpos sublevados e dos pensamentos compartilhados.
É por isso que um momento, um momento histórico singular, foi cantado por todos os poetas comunistas que escreviam entre os anos vinte e momento da guerra civil espanhola que vai, como se sabe, de 1936 a 1939.
Notemos que a guerra civil espanhola é certamente o evento histórico que mobilizou mais intensamente os artistas e intelectuais do mundo inteiro. De um lado, é notável o engajamento pessoal de escritores de todas as tendências ao lado dos republicanos, portanto também dos comunistas. Quer se trate de comunistas organizados, de socialdemocratas, de simples liberais, ou mesmo de católicos fervorosos como o escritor francês Bernanos, é extraordinária a lista daqueles que tomaram publicamente a palavra, que foram à Espanha em plena guerra, ou mesmo que combateram ao lado das forças republicanas. O número de obras-primas realizadas nessa ocasião não é menos impressionante. Já mencionamos o caso da poesia. Mas pensemos no esplêndido quadro de Picasso intitulado Guernica nestes dois romances que estão entre os maiores do gênero: A esperança, do francês Malraux, e Por quem os sinos dobram, do norte-americano Hemingway. A assustadora e sangrenta guerra civil espanhola iluminou a arte mundial durante alguns anos.
Vejo ao menos quatro para esse engajamento massivo e mundial dos intelectuais por ocasião da guerra civil espanhola.
Em primeiro lugar, o mundo dos anos trinta é um mundo de uma vasta crise ideológica e política. Essa crise, a opinião pública pressente cada vez mais que ela não pode ter uma saída pacífica, uma solução legalista e consensual. O horizonte temível é aquele da guerra interna e externa. Entre os intelectuais, a tendência é a escolha entre duas orientações absolutamente opostas: a orientação fascista e a comunista. Durante a guerra na Espanha, esse conflito tomou a forma pura e simples da guerra civil. A Espanha tornou-se o emblema violento do conflito ideológico central do período. É o que poderíamos chamar de valor simbólico, e portanto universal, dessa guerra.
Em segundo lugar, durante a guerra civil espanhola, foi dada aos artistas e intelectuais de todo o mundo a ocasião não só de manifestar seu apoio ao campo popular, mas de participar diretamente dos combates. Desse modo, o que era uma opinião se transforma em ação. O que era solidariedade se transforma em fraternidade.
Em terceiro lugar, a guerra teve na Espanha uma virada feroz que abalou os espíritos. A miséria e a destruição estavam por todos os lados. O massacre sistemático dos prisioneiros, o bombardeio cego de cidades, o ímpeto dos dois campos: tudo isso deu uma ideia do que poderia ser e, de fato, do que foi o conflito mundial do qual a guerra civil espanhola era o prólogo.
Em quarto a guerra civil espanhola foi o momento mais forte, talvez único na história de realização do grande projeto marxista: aquele de urna política revolucionária realmente internacionalista. É preciso lembrar o que foi a intenção das brigadas internacionais: ela mostrou que a vasta mobilização internacional das mentes era também e antes de tudo uma mobilização internacional dos povos. Penso no exemplo da França: vários milhares de operários, não raro comunistas, foram combater na Espanha como voluntários.
Mas havia também americanos, alemães, italianos, russos, pessoas de todos os países. Essa dedicação internacional exemplar, essa viva subjetividade internacionalista, é provavelmente a mais impressionante realização do que Marx pensou, e que se resume em duas frases. Negativamente, os proletários não têm pátria, sua pátria política é todo o mundo dos homens e mulheres vivos. Positivamente, a organização internacional é o que permite enfrentar e finalmente vencer realmente o inimigo de todos, o campo capitalista, aí compreendido em sua forma extrema, que é o fascismo.
Assim, os poetas comunistas encontraram na guerra civil espanhola grandes razões subjetivas para renovar a poesia épica na direção de uma epopeia popular, uma epopeia que fosse ao mesmo tempo aquela do sofrimento dos povos e aquela de seu heroísmo internacionalista, organizado e combatente.
Os próprios títulos dos poemas ou das recolhas de poemas são significativos. Eles indicam quase sempre uma espécie de reação sensível do poeta, uma espécie de sofrimento partilhado com a terrível provação por que passa o povo espanhol. Assim, o livro de Pablo Neruda m por título Espanha no coração. É que o engajamento primeiro do poeta é uma solidariedade afetiva, subjetiva, imediata, com o povo espanhol em guerra. Do mesmo modo, o belo título de César Vallejo, Espanha, afasta de mim este cálice, indica que, para o poeta, o sofrimento partilhado torna-se sua própria provação poética, quase insuportável.
Mas os dois poetas vão desenvolver esse primeiro ímpeto afetivo pessoal na direção quase oposta, a de um uso criativo do próprio sofrimento; a de uma liberdade desconhecida. Essa liberdade desconhecida é justamente aquela da reversão da miséria em heroísmo, da reversão de uma situação angustiante e particular em uma promessa universal de emancipação. Veja-se como diz, com suas metáforas misteriosas, Cesar Vallejo:
Proletário que morres de universo, em que frenética harmonia acabará tua grandeza, tua miséria, tua imperiosa voragem tua violência metódica, teu caos teórico e prático, tua vontade dantesta, espanholíssima, de amar, mesmo à traição, teu inimigo! Libertador cingido de grilhões, sem cujo esforço até hoje a extensão continuaria sem asas, vagariam acéfalos os cravos, antigo, lento, purpurino, o dia nossos amados crânios, insepultos. Camponês caído com tua verde folhagem de homem, com a inflexão social de teu mindinho com o teu boi que fica, com tua física, também com tua palavra atada a um pau e teu céu arrendado e com a argila inserida em teu cansaço e a que estava na tua unha, caminhando! Construtores agrícolas, civis e guerreiros, da ativa, formiguejante eternidade: estava escrito que vós faríeis a luz, entreabrindo na morte os vossos olhos; que, na cruel queda de vossas bocas, virá em sete bandejas a abundância, tudo no mundo será subitamente de ouro e o ouro, fabulosos mendigos de vossa própria secreção de sangue, e o próprio ouro então será de ouro! (1)
Veja-se como a própria morte, a morte em combate dos voluntários do povo espanhol, torna-se uma construção; mais ainda, uma espécie de eternidade não religiosa, uma eternidade terrestre. O poeta comunista pode dizer: "Construtores agrícolas, civis e guerreiros, da ativa, formiguejante eternidade". Essa eternidade é aquela do verdadeiro real, da verdadeira vida, arrancada às potências cruéis. Ela transforma tudo no ouro da verdadeira vida. Mesmo o ouro maldito dos ricos e dos opressores voltará a ser simplesmente o que ele é: "e o próprio ouro então será de ouro".
Poder-se-ia dizer que, na provação da guerra civil espanhola, a poesia comunista canta o mundo que retornou ao seu real, o mundo-verdade, que pode nascer definitivamente quando a desgraça e a morte se transmudam em heroísmo paradoxal. O que Cesar Vallejo dirá mais adiante invocando a "vítima em coluna de vencedores", e quando ele exclama: "Na Espanha, em Madri, estão chamando para matar, voluntários da vida!".
Pablo Neruda, como foi dito, parte também da dor, da miséria, da compaixão. Assim, no grande poema épico que tem por título "A chegada em Madri da Brigada Internacional", ele começa dizendo que "a morte espanhola, mais ácida e aguda que as outras mortes, enchia os campos até então honrados pelo trigo". Mas aquilo a que ele é mais sensível é o internacionalismo, a chegada à Espanha daqueles que, vindos do mundo inteiro, ele chama diretamente de "camaradas". Ouçamos o poema dessa chegada:
Camaradas então eu os vi e meus olhos estão até agora cheios de orgulho porque os vi através da manhã de névoa chegar ao front puro de Castela silenciosos e firmes como sinos antes do amanhecer. Cheios de solenidade e de olhos azuis vir de longes e longes vir de vossos rincões, de vossas pátrias perdidas, de vossos sonhos cheios de doçura queimada e de fuzis para defender a cidade espanhola em que a liberdade encurralada pode cair e morrer mordida pelas bestas.
Irmãos, que desde agora vossa pureza e vossa força, vossa história solene seja conhecida da criança e do varão, da mulher e do velho, chegue a todos os seres sem esperanças, baixe até as minas corroídas pelo ar sulfúrico, suba as escadas inumanas do escravo, que todas as estrelas, que todas as espigas de Castela e do mundo escrevam vosso nome e vossa áspera luta.
E vossa vitória forte e terrestre como um carvalho vermelho Porque fizeste renascer com vosso sacrifício a fé perdida, a alma ausente, a confiança na terra. E por vossa abundância, por vossa nobreza, por vossos mortos como por um vale de duras rochas de sangue passa um imenso rio com pombas de aço e de esperança.
O que vemos agora é, em primeiro lugar, a evidência da fraternidade. A palavra "camaradas" é seguida mais adiante pela palavra "irmãos". Essa fraternidade põe em destaque não tanto a transformação do mundo real, mas a transformação subjetiva. Sem dúvida, antes de tudo, todos esses militantes comunistas internacionais vieram "de longe", de seus "rincões", de suas "pátrias perdidas". Mas sobretudo eles vieram de seus "sonhos cheios de doçura queimada e de fuzis". Note-se a proximidade típica entre a doçura e a violência. É o que será reafirmado na imagem da "pomba de aço". o combate é a construção não de uma violência nua, não de uma potência, mas de uma subjetividade capaz de enfrentar a longa duração, porque ela tem confiança em si mesma. Os operários e os intelectuais das brigadas internacionais, misturados, fizeram renascer "a fé perdida, a alma ausente, a confiança na terra". A pomba deve ser, porque é a guerra, uma pomba de aço, mas ela é também, e sobretudo, diz o poema, uma pomba de esperança. No fundo, a epopeia guerreira celebrada por Neruda, o que ele chama de "vitória forte e terrestre como um carvalho vermelho", é antes de tudo a criação de uma nova confiança. Trata-se de sair do niilismo resignado. E isso, creio, esse valor construtivo da confiança comunista, é uma necessidade hoje.
Paul Éluard, o poeta francês, retoma, misturados, dois motivos que já mencionamos. Por um lado, como diz César Vallejo, os voluntários internacionalistas da erra na Espanha representam uma nova humanidade, simplesmente porque eles são homens-reais, e não a falsa humanidade, concorrencial e obcecada pelo dinheiro e pela mercadoria, do mundo capitalista. Por outro lado, como diz Pablo Neruda, esses voluntários transformam o niilismo em uma nova confiança. Uma estrofe do poema "A vitória de Guernica" diz precisamente:
Homens reais para quem o desespero alimenta o fogo devorador da esperança abramos juntos o último broto do futuro
Mas Éluard é sensível, na guerra civil espanhola, a um outro dado de valor universal. Para ele, como para Rousseau, há uma bondade fundamental da humanidade, bondade que a opressão tenta destruir com a concorrência, o trabalho forçado, o dinheiro Essa bondade do mundo se mantém no povo em sua vida obstinada, na sua coragem de viver. O poema começa assim:
Belo mundo de casebres da noite e dos campos
Éluard pensa que as mulheres e as crianças encarnam especialmente essa bondade universal, esse tesouro subjetivo que finalmente os homens tentam defender na guerra civil espanhola:
VIII As mulheres as crianças têm o mesmo tesouro de folhas verdes da primavera e de leite puro e de permanência em seus olhos puros
IX As mulheres as crianças têm o mesmo tesouro em seus olhos os homens o defendem como podem
X As mulheres as crianças têm as mesmas rosas vermelhas em seus olhos cada um mostra seu sangue
XI O medo e a coragem de viver e de morrer A morte é tão fácil e tão difícil
A guerra civil espanhola, para Éluard, revela de que tesouros simples dispõe a vida humana. É por isso que a opressão extrema e a guerra são também a revelação de que os homens devem preservar o tesouro da vida. E, para isso, é preciso preservar a confiança, mesmo quando o inimigo nos destrói e nos impõe a facilidade da morte. Essa confiança, sabemos bem é o próprio comunismo. É por isso que o poema se chama "A vitória de Guernica". A destruição da cidade pelas bombas alemãs, os dois mil mortos dessa primeira experiência selvagem que anuncia a guerra mundial tudo isso será também uma vitória desde que permaneça a confiança de que o tesouro da vida simples é indestrutível. É por isso que o poema conclui:
Párias, a morte, a terra e o horror De nossos inimigos têm a cor Monótona de nossa noite Teremos razão.
É isso que podemos chamar de comunismo poético: cantar a certeza de que a humanidade tem razão em criar um mundo onde o tesouro da vida simples será pacificamente preservado. E que, como tem razão, ela imporá essa razão, e a triunfará sobre seus inimigos. É esse vínculo entre a vida popular, a razão política e a confiança na vitória que Éluard quer dar, na língua, aos sofrimentos e aos heroísmos da guerra civil espanhola.
No belíssimo poema intitulado “Neva na noite”, Nâzim Hikmet cruzará, por sua vez, todos esses temas do comunismo poético a partir de uma identificação subjetiva. Ele imagina uma sentinela do campo popular às portas de Madri; essa sentinela, esse homem só - assim como o poeta está sempre só no trabalho da língua –, carrega em si, frágil, ameaçado, tudo o que o poeta deseja, tudo o que, para ele, dá sentido à existência. Assim, um homem só às portas de Madri carrega o peso dos sonhos de toda a humanidade:
Neva na noite. Estás às portas de Madrid. Tens um exército inteiro diante de ti. Um exército que mata o que temos de mais belo, a esperança, a nostalgia, a liberdade e as crianças. Neva na noite.
Veja-se como retornam os temas espanhóis do comunismo poético: o voluntário da guerra civil espanhola é o guardião da esperança revolucionária universal. À noite, sob a neve, ele é o homem que tenta impedir que percamos a confiança.
Sem dúvida, a singularidade Nâzim Hikmet está no fato de que ele vê nessa guerra a profunda universalidade da nostalgia. O comunismo poético não é redutível a uma sólida e vigorosa certeza da vitória. Ele também e o que poderíamos chamar de nostalgia do futuro. O cântico da Sentinela de Madri se refere a esse sentimento tão particular: a nostalgia de uma grandeza e de uma beleza que, todavia, ainda não chegaram. O comunismo é, aqui, o futuro anterior: sentimos um tipo de pesar poético pelo que imaginamos que o mundo terá sido quando o comunismo tiver chegado. É daí que provém a força da conclusão do poema de Hikmet:
Eu sei: tudo o que há de grande e belo tudo o que o filho-do-homem criará de grande e belo isto é, essa nostalgia terrível, essa fome da minha alma, estão nos olhos da minha sentinela às portas de Madri. E eu, como ontem, amanhã ou esta noite, só posso lhe oferecer meu afeto.
Percebe-se essa mistura do presente, do passado e do futuro que o poema cristaliza no personagem imaginado da sentinela solitária face ao exército fascista, na noite e na neve de Madri. Já há uma nostalgia do que a verdadeira humanidade, o povo combatente de Madri, é efetivamente capaz de criar de beleza e grandeza. Se esse povo é capaz de criá-las, então a humanidade certamente as criará. E então nós podemos ter nostalgia do que seria o mundo se essa criação possível já tivesse tido lugar. Assim, a poesia comunista é não apenas poesia épica do combate, poesia histórica do futuro, poesia afirmativa da confiança. Ela é também poesia lírica do que o comunismo, figura da humanidade reconciliada com sua própria grandeza, terá sido após a vitória, e que, para o poeta, já é pesar e melancolia assim como "fome de sua alma", tanto passado quanto futuro, nostalgia e esperança.
Em relação à guerra espanhola propriamente dita, Bertolt Brecht também se engajou com a escrita de uma peça didática, Os fuzis da senhora Carrar, que é dedicada ao debate interior sobre a necessidade de participar de um combate justo, por mais excelentes que sejam as razões para permanecer à distância.
Todavia, talvez isto seja o mais importante: o comunista independente que Brecht sempre foi é o contemporâneo de graves e sangrentas derrotas da ação comunista. Ele esteve diretamente presente e ativo no momento da derrota do comunismo alemão para os nazis. E ele também foi, é claro, contemporâneo da terrível derrota do comunismo espanhol para o fascismo militar de franco. Mas uma das tarefas que o poeta Brecht se outorgou desde muito cedo foi a de sustentar poeticamente a confiança, a confiança política, mesmo nas piores condições, mesmo no momento da mais terrível derrota. Reencontramos aqui o tema da confiança como aquilo que o poema deve suscitar a partir da reversão da compaixão em admiração, e da reversão da resignação em heroísmo. Ele dedicou a essa tarefa subjetiva alguns de seus poemas mais belos, nos quais a concentração quase abstrata do propósito visa a produzir um tipo de entusiasmo. Penso no fim do poema "Elogio da dialética", em que reencontramos as metamorfoses temporais de que já falamos: o futuro que se torna passado, o presente que é levado à potência do futuro - tudo isso convertendo em poema o fato de que a subjetividade política mantém um vínculo muito complexo com o devir histórico. Brecht poetiza a recusa da impotência em nome da presença do futuro no próprio presente:
Quem se atreve a dizer: nunca? De quem é a culpa, se a opressão perdura? Nossa. De quem é a culpa, se ela for destruída? Também nossa. Quem for derrotado que se levante! Quem está perdido, lute! Quem reconheceu sua situação, como haverá de ser detido? Os vencidos de hoje hão de ser os vencedores de amanhã E do nunca se faz: ainda hoje! (2)
Não devemos desejar, nós também, que "nunca" se torne "hoje”? Querem nos acorrentar às necessidades financeiras do Capital. Alegam que devemos obedecer hoje para que exista o amanhã. Alegam que a Ideia comunista está morta para sempre, após o desastre stalinista. Mas não devemos, de nossa parte, "reconhecer nossa situação?" Por que aceitamos um mundo onde 1% da população mundial possui 86% das riquezas mundiais? É preciso aceitar que o mundo seja organizado por desigualdades tão terríveis? É preciso pensar que isso não mudará nunca? É preciso pensar que o mundo será sempre organizado pela propriedade privada e a feroz concorrência monetária?
A poesia diz sempre o essencial. A poesia comunista dos anos trinta e quarenta nos lembra que o essencial do comunismo, da ideia comunista, não é nem nunca foi a ferocidade de um Estado, a burocracia de um Partido ou a burrice de uma obediência cega. Os poemas nos dizem que a ideia comunista é a compaixão pela simples vida e pela injustiça; além disso, que ela é a ampla visão de um levante, a um só tempo pensado e praticado, que se opõe à resignação e a converte em um heroísmo paciente; ela nos diz que esse heroísmo paciente visa à construção coletiva de um novo mundo pelos meios de um novo pensamento do que pode ser a política. Ela nos lembra, no tesouro de imagens e de metáforas, do ritmo e da musicalidade das palavras, que o comunismo é, em sua essência, a projeção política dos tesouros da vida de todos.
Brecht também viu isso muito bem. Ele se opõe à visão trágica e monumental do comunismo. Sim, há uma poesia épica do comunismo, mas ela é a epopeia paciente, heroica justamente em virtude de sua paciência, de todos que se juntam e se organizam para curar o mundo de suas doenças mortais que são a injustiça e a desigualdade, e que em razão disso deve ir à raiz das coisas: limitar a propriedade privada, acabar com a violência apartada do poder de Estado, superar a divisão do trabalho. Isso, Brecht nos diz, não é uma visão apocalíptica. Trata-se, ao contrário, do que é normal, razoável, do que reflete o desejo médio de todos. É por isso que o poema comunista nos lembra que a doença e a violência estão do lado do mundo capitalista e imperial tal como ele é, e não do lado da grandeza calma, normal, média da ideia comunista. É isso que Brecht nos dirá num poema de título totalmente surpreendente, "O comunismo é o meio-termo":
Convocar à subversão de toda ordem existente Parece terrível. Mas o existente não é uma ordem.
Refugiar-se na violência Parece maldade. Mas se o que se exerce é quase sempre a violência, Então não é nada demais.
O comunismo não é o extremo O que pode ser realizado apenas em parte Mas antes que ele seja completamente realizado Não pode haver estado Que mesmo para um insensível seja tolerado.
O comunismo é a exigência mínima, O mais óbvio, o meio-termo, o racional. Quem é contra ele não pensa diferente, Simplesmente não pensa, ou pensa só em si É um inimigo da humana espécie
Terrível, mau, insensível, E sobretudo o que quer o mais extremo, Que quando realizado mesmo em parte Leva toda a humanidade ao desastre.
Assim, a poesia comunista nos propõe uma epopeia muito particular: a epopeia da exigência mínima, a epopeia do que não é jamais extremo nem monstruoso. A poesia comunista, com seus recursos de doçura combinados com seus recursos de entusiasmo, nos diz o seguinte: levantem-se para querer, pensar e fazer que o mundo seja oferecido a todos como o mundo que pertence a todos, como o poema oferece a todos, na língua o mundo comum que está sempre aí, mesmo que em segredo. Houve e há todo tipo de discussão concernente à hipótese comunista. Nós a discutimos na filosofia, na sociologia, na economia, na história, na ciência política... Mas o que eu quis dizer foi isto: há uma prova do comunismo através do poema.
ALAIN BADIOU Trad.: Ana Martins Marques e Daniel Arelli
(1) Tradução de Thiago de Mello, em: VALLEJO, César. Poesia completa. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005. Salvo indicação em contrário, as traduções dos poemas são de nossa responsabilidade (Nota dos tradutores).
(2) Tradução de André Vallias, em: BRECHT, Bertolt. Poesia. São Paulo: Perspectiva, 2019, p. 251.
In: OURIÇO - revista de poesia e crítica cultural, n.1, 2021.
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